DORAS E CARMOSINAS
Fernanda
Montenegro
Texto lido pela atriz Fernanda
Montenegro em 1999 quando foi condecorada pelo então Presidente da República
Fernando Henrique Cardoso com a mais alta comenda concedida a um cidadão: Grã
cruz da Ordem Nacional do Mérito. Sob aplausos de artistas e autoridades, em
uma solenidade incomum no Palácio do Planalto, carregada de emoção, a atriz
comparou em seu discurso a personagem Dora do filme Central do Brasil à
professora Carmosina Meneses que a alfabetizou e fez um apelo ao presidente:
que transforme as Doras em Carmosinas. Emocionante!
“Há momentos em que os anos
vividos nos obrigam a olhar em volta e fazer uma revisão das nossas perdas e
dos nossos danos. Se hoje estou sendo agraciada com a mais alta condecoração de
nosso país, é porque sou resultado de muitas influências e convivências.
Centenas de companheiros e personagens me formaram, me educaram e estão comigo
sempre. Não me refiro só a minha família de sangue, mas principalmente à minha
família de opção...
Mas existe o antes. A
infância. E – por que não? – o período da minha educação primária. Acho que é
aí que tudo começa. Ao trabalhar o mundo da professora Dora de Central do
Brasil, lá na infância é que fui buscar, na minha memória, as primeiras
professoras que me alfabetizaram. Credenciadas, respeitadas, prestigiadas
professoras primárias da minha infância. Professoras de escolas públicas que eu
frequentei, no subúrbio do Rio.
Eu me lembro especialmente
com muito carinho de Dona Carmosina Campos de Meneses, que me alfabetizou. E,
mais do que isso, que me ensinou a ler, o que é um degrau acima da
alfabetização. Naquele tempo, as
professoras ainda se chamavam Carmosinas, Afonsinas, Ondinas. Busquei na
memória a figura de Dona Carmosina para me aproximar da professora Dora (para
mim, personagem não é ficção). E vi como seria trágico se a minha tão
prestigiada e amada Dona Carmosina viesse a se transformar, por carências
existenciais e sociais, numa endurecida e miserável Dora. Foi essa visão de
tantas perdas que me deu o emocional da cena final do filme quando Dora escreve
“tenho saudade de tudo”.
Saudade é uma palavra forte
e uma forma profunda de chamamento, de invocação. Entre Carmosina e Dora lá se
vão 60 anos. Penso que minha vocação de atriz foi sensibilizada a partir das
leituras em voz alta, leituras muito exigidas, cuidadas, orgânicas, que nós
alunos fazíamos usando os livros de Português do antigo curso primário. As
primeiras coisas que decorei na vida foram dois poemas que Dona Carmosina
mandou (é essa a palavra: mandou) que decorássemos nas férias de Dezembro: “Meus
oito anos” de Casimiro de Abreu e “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias. Na
volta das férias naquele ano de 1937, eu, mesmo tímida, envergonhada e encantada
declamei: “Oh! Que saudades que eu tenho da aurora da minha vida, da minha
infância querida que os anos não trazem mais. Que amor, que sonhos, que flores,
naquelas tardes fagueiras, à sombra das bananeiras debaixo dos laranjais”.
Essas bananeiras e esses laranjais não eram licença poética. Os subúrbios de
nossas cidades ainda não tinham sofrido essa degradação ambiental que
infelizmente se fez presente com o passar dos anos. Vi muitos Brasis entre
esses meus oito anos, os oito anos do poeta e essas duas mulheres: Carmosina e
Dora. Vejo essa passagem de tempo, claro, com alegrias e ganhos mas também com
muitas perdas e dor. Sou atriz e confesso a minha deformação profissional: esse
sentimento de perdas, essa nostalgia me ajudaram a resgatar o emocional dessa
desprotegida e amarga Dora ao intuir que dentro dessas Doras desiludidas existe
sempre uma Carmosina à espera de um ombro e de um socorro.
Senhor Presidente, nesta
nossa confraternização de artistas e autoridades como não lembrar o milagre que
a educação e a cultura produzem em todo ser humano. É este, me parece, o
espírito que nos une aqui, neste espaço, e por estarmos diante da mais alta
autoridade do nosso país, que é Vossa Excelência, a herança cultural da
reivindicação artística e social se apresenta... Mas, Vossa Excelência é um democrata
e um professor, por isso peço a Vossa Excelência me dar o direito de não
resistir, mesmo porque acredito que estamos numa concordância de vontades.
Senhor Presidente, precisamos urgentemente de muitas, muitas Carmosinas e, se
possível, nenhuma Dora. Vossa Excelência tem o poder para transformar as Doras
em Carmosinas. O país lhe deu esse poder. Eu tenho um sonho que certamente é
também um sonho de Vossa Excelência e de muitos, muitos, muitos brasileiros. Eu
tenho um sonho (parodiando o notável reverendo americano) que um dia,
realmente, todas as desesperadas Doras serão resgatadas desses ônibus perdidos
que atravessam esse nosso sertão de miséria e que a elas será dado nem que seja
uma parcela daquele reconhecimento e respeito social das professoras Carmosinas
da minha infância. Doras com visão de futuro, com autoestima, economicamente
ajustadas. Professoras Doras inventivas, confiantes, confiantes no seu
magistério, para que possam ser amadas como seres humanos e (por que não?) como
personagens também. Muito amadas e lembradas por todos os Vinicius e todos os
Josués de nosso país. Mesmo assim prefiro as Carmosinas... Que Dora compreenda
e me perdoe. Vale a troca. Para o fortalecimento de nossa educação, da nossa
cultura, vale à pena, Senhor Presidente, se a nossa alma, isto é, se a
realização do sonho de todos nós, se essa realização não for pequena. Faço de
Dora e Carmosina minhas companheiras neste meu agradecimento. Ignorá-las seria
desprezar a minha infância e a realidade da minha, não digo velhice, mas da
minha madureza.”
0 comentários:
Postar um comentário